Dias atrás percebi a relação estranha que eu tenho com as minhas cicatrizes. Geralmente elas nos fazem lembrar de coisas ruins, principalmente do corte na pele. Nunca gostei de me machucar, mas quando olho cada cicatriz em meu corpo, lembro de alguma história.
A mais antiga com certeza foi a do pé, quando eu dava meus primeiros passos na agricultura. Desde pequeno tive alguns lugares no sítio onde eu me aventurava plantar, cantos de terra abandonados e que haviam sido ignorados por outros da família. Em um desses lugares eu decidi plantar feijão. Então preparei razoavelmente a terra, provavelmente carpi, peguei as sementes e uma plantadeira manual. Fui plantar, o que exige uma boa coordenação motora, para enfiar o bico na terra com ele fechado e abrir em seguida para as sementes caírem na cova. Basta eu falar que estava de chinelo para o leitor imaginar o que aconteceu em seguida. Acertei com força o bico da plantadeira em cima do meu dedão. Deu um corte, começou a sangrar, aos berros chamei a minha mãe, que logo enfaixou o ferimento. Agora a cicatriz está quase imperceptível, mas sempre me lembra de não plantar feijão calçando chinelo de dedo.
Outra cicatriz é a do joelho, da época em que o gado era solto em uma pastagem aos fundos do terreno. Havia uma cerca feita a muitos anos pelo meu pai para o gado não ir ainda mais longe, mas com o tempo os fios de arame farpado foram se soltando e os palanques quebrando. Com isso o gado passava por cima e ia para a floresta, enquanto os fios de arame ficaram escondidos no meio do capim. Certa vez, como de costume, eu e meu pai fomos buscar o gado para tirar leite das vacas e deixá-las à noite dentro da estrebaria. Eles estavam além da cerca, e quando entrei na floresta para tirá-los para fora, fui me adentrando na vegetação densa e não lembrei dos arames da cerca. Estava de bermuda e só parei quando senti o farpado arame entrando no meu joelho. Não foi apenas um furo, até eu perceber e recuar o joelho foi para o lado e rasgou a pele. Hoje a cicatriz está quase imperceptível, mas por um longo período ela me lembrava daquele dia.
As cicatrizes que eu tenho nas costas se devem a um dia em que eu estava ajudando minha mãe a limpar uma área de mata pra plantar batata-doce. Havia muitos troncos e raízes de árvores que haviam sido deslocadas do terreno do vizinho a vários anos atrás, e nós estávamos colocando-os ao lado da cerca de divisa, para ser mais difícil de os nossos cães irem no terreno do vizinho. Em um momento eu estava puxando um desses troncos com o machado e de repente ele escorregou e eu caí no meio da cerca, os arames rasgaram e deixaram umas quatro cicatrizes nas minhas costas. Nada traumatizante, algo que me fez lembrar de um momento bom que provavelmente eu teria esquecido. No dedo indicador da mão esquerda eu tenho a marca de ter cortado metade da unha e um tanto de pele quando cortava pasto para o gado. Essa é a única cicatriz que me faz lembrar da dor que senti durante aquelas semanas, cada vez que precisava trocar o curativo para pôr outro.
Essas cicatrizes estão desaparecendo aos poucos, preciso procurá-las, diferente de quando eu as encontrava por acaso. Com isso imagino cicatrizes que realmente trazem muita dor, lembranças de violência, golpes de quem tinha por obrigação cuidar. Pessoas que esperam com razão pelo desaparecimento das marcas da agressão, que muitas vezes demonstram superação. Se pudesse eu faria uma troca, ficaria com essas marcas na pele para lembrar dos meus bons momentos, enquanto as cicatrizes de pessoas boas com lembranças ruins sumissem. Não só da pele, mas da mente, as cicatrizes mais persistentes.
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Publicado originalmente em 10 de Março de 2023.
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