Com a Palavra, a Comunidade.

Nova Eustacia era um vilarejo comum no velho oeste selvagem, com suas diligências, vendedores itinerantes, mineiros, criadores de gado e alguns tiroteios esporadicamente. Um dos comércios mais populares do lugar era a “Vendinha do Manuel”, e como o nome já dá a entender, Manuel era o dono daquele estabelecimento promissor. Gerenciava a aquisição dos produtos e a venda com rigor, enquanto seu filho Gustav cuidava das prateleiras e, Anna, sua esposa, limpava o estabelecimento com frequência e o ajudava nas vendas quando podia.

Manuel vendia tecidos, materiais escolares, tintas, brinquedos, produtos de limpeza, ferramentas e munições. Certo dia, uma freguesa, acompanhada do filho pequeno, foi comprar algumas coisas e, por um descuido, o deixou sozinho olhando os materiais escolares. Logo o encontrou com uma caneta rabiscando algumas folhas de um caderno. Tirou logo os produtos das suas mãos e ficou sem graça, não queria comprar o caderno, mas agora o repreendia severamente e precisava  pagar pelo erro do filho. Por sorte Anna estava presente e a tranquilizou, pois sabia que a cliente só podia comprar o mais necessário possível e seu filho sempre fora educado, apenas dessa vez envergonhou a mãe por ingenuidade. 

Anna elogiou os desenhos do menino, arrancou a folha rabiscada do caderno e deu a ele junto com alguns lápis de cor velhos que tinha no balcão. Pediu que continuasse enquanto a mãe terminava de fazer as compras. A mulher pegou os itens das prateleiras e pagou, se desculpou novamente para Anna e Manuel e chamou o menino. Ele se aproximou de Anna, devolveu os lápis e lhe presenteou com a folha de rabiscos, agora colorida. Anna agradeceu e ficou olhando o desenho até que mãe e filho saíssem do estabelecimento. 

– Não sei o que é pra ser isso, mas gostei, me dá uma paz olhar essa gravura – falou, entregando o desenho a Gustav. 

– Parece ser um rosto – disse o filho.

– É lixo, jogue fora – esbravejou Manuel.

– Nem pense nisso – exclamou Anna tirando o papel das mãos do filho. Pegou uma tachinha do balcão e atarrachou o desenho na parede, ao lado do balcão. Manuel achou um absurdo, mas não queria confrontar a esposa. Mais clientes chegaram. Alguns fingiram ignorar o desenho, algumas mulheres elogiaram e perguntaram quem foi o artista responsável. Filip, o médico, apareceu comprar charutos e ficou analisando a obra.

– Vocês não têm o mesmo olhar do artista – falou.

Anna e Gustav ficaram curiosos. 

– Vocês penduraram o desenho do lado errado, permita-me. Esse bigode não me engana, é uma caricatura do Xerife! – falou arrancando o papel da parede e virando de lado. – Agora sim! Vejam, não se parece com o xerife?

Anna e Gustav concordaram enquanto Manuel continuou achando a ideia ridícula. 

– Têm um outro desenho aqui –  falou Anna, abrindo o caderno em outra página que o menino rabiscou.

Filip colocou o caderno em cima do balcão e, com o monóculo, passou a avaliar o desenho. Virou o caderno algumas vezes. – Dessa vez está certo –  falou. – Esse não é tão difícil, é o bebedouro ali fora com alguns cavalos amarrados, só é um pouco abstrato. 

Anna e Gustav passaram a olhar o desenho com interesse, enquanto Filip lhes explicava cada parte do desenho. 

– Achei muito singelo – expressou Filip –  posso escrever um poema sobre isso na outra página?

Gustav lhe ofereceu um lápis, porém o médico tirou uma caneta do bolso e pediu se havia alguma tinta ali. Anna buscou um tinteiro e logo Filip escreveu seu poema. Estava animado, comprou seus charutos e foi embora com uma alegria contagiante. Outros fregueses chegaram e foram atendidos, apenas uma jovem prestou atenção ao caderno e lendo a poesia enquanto a mãe fazia suas compras. Antes de ir embora, elogiou as artes para a mãe e agradeceu por terem deixado aquelas obras amadoras em exposição para que ela pudesse admirar. Anna ficou encantada com os resultados de sua atitude bondosa e passou a manhã assim. Há tarde, um fazendeiro foi buscar suprimentos na loja e pediu se Manuel não queria comprar um cavalo. 

– Eu não – respondeu. – Mas quem sabe, desenhando ele naquele caderno ali, talvez você consiga alguém que compre – falou rindo.

O fazendeiro ficou curioso e foi conferir o caderno.

– Minha esposa e filhas iam gostar de ver isso, gostam de ver rabiscos de criança e palavras vazias! – Deu uma pausa olhando o desenho – Me empreste uma caneta, o máximo que pode acontecer é não funcionar.

Pegou a caneta e escreveu as características do cavalo, depois assinou e escreveu a localidade em que morava. 

– Talvez alguma dama olhe isso e comente com o marido – comentou Manuel – pelo menos pra uma coisa útil isso deve funcionar.

O fazendeiro foi embora depois das compras e novos clientes chegaram. Alguns olhavam o caderno e ficavam quietos, outros elogiavam as artes. Outro dia apareceu a jovem que havia admirado os desenhos, e pediu para colar um de seus desenhos no caderno. A emprestaram uma cola e o desenho foi colado com esmero na primeira folha vazia. com o tempo, a pressa dos clientes acabou, enquanto Manuel atendia alguém, os outros iam folhear o livro e analisar as novas artes e notícias, além de escrever curiosidades, desabafos, desenhar e fazer anúncios. Para facilitar o uso por mais de uma pessoa, outro caderno também foi destinado para esse fim, e cada vez que as folhas acabavam, outro caderno novo era adicionado à disposição do público. Com o tempo surgiram desenhos obscenos, e sabotagens em artes de outros usuários, o que exigiu dos comerciantes uma fiscalização maior. Cadeiras foram dispostas a quem quisesse apreciar e divulgar algo com paciência, e com o tempo surgiram diários comunitários também para crianças e damas. Eram uma atração, trouxeram mais fregueses e promoveram negócios, pois pelos diários era possível encontrar compradores e vendedores, além de artes despretensiosas e pretensiosas também. O futuro disso não me informaram, apenas fiquei sabendo que o xerife gostou do desenho, apesar de acreditar que o bigode não se parecia com o dele.

Postado originalmente em 23 de Novembro de 2023.


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