Sem Café

O pó de café acabou, lembrou Carlos ao encher a chaleira de água. Abriu o armário e conferiu o peso do vidro de café. Estava leve, permanecia vazio.

Mas eu avisei a Su! – pensou, lançando a culpa para a esposa, que jazia em profundo sono na cama do casal.

Como eu vou trabalhar? – esbravejou. Pegou a carteira no escritório e voltou para a cozinha. Queria a lista de compras, olhou em cima da mesa, nada. Na porta da geladeira, nada, junto com outros papéis na gaveta do armário, nada. Saiu sem a lista. Pasta de dentes, lembrou, pelo menos uma das coisas que tinha de estar nas anotações, depois do pó de café. Não precisava do carro, iria a pé até o mercadinho da esquina e colocaria a cabeça no lugar, seus pensamentos deveriam estar em ordem para continuar o livro. Precisava finalizar logo o esboço, a editora estava cobrando há umas semanas, e o pior, agora estava sem café.
Porque ela não fez as compras? Questionava-se com frequência durante o caminho. Alguns pássaros cantavam e Carlos se perguntava se sua vida podia ser mais simples. Claro, era a resposta, mas não queria simplicidade, admirava tudo que fosse complexo, indagava por simplicidade mas tinha medo dela.
Chegou ao mercado, no exato momento em que seu cabeleireiro, ou ex cabeleireiro, também foi comprar algo. O cumprimentou animado, escondendo a apreenção de ter cortado o cabelo do outro lado da cidade dessa vez. O cabeleireiro respondeu o cumprimento animado.

Bom te ver aqui amigo! – disse o profissional. Ele sabe, pensou Carlos. E cada um foi para um corredor diferente. Carlos queria estar em qualquer lugar do mundo, menos ali. Primeiro pegou a pasta de dente, depois se dirigiu até a seção de chás e cafés. Não achou a marca que sempre comprava e pegou outro para ler a embalagem. Percebeu que estava de pantufas, pelo menos a rotina matinal não o deixou pagar uma gafe maior, sempre colocava roupa de sair ao acordar, mas não abandonava as pantufas confortáveis. Com a decepção se dirigiu imediatamente ao caixa com a embalagem de café que tinha em mãos. Sem filas, escolheu o caixa que estava vazio e esperou a moça do caixa passar as compras no sistema.

Carlos? É você? – ela perguntou.

Sim – respondeu ele tentando reconhecê-la

– Estela! – lembrou-se. Era sua amizade colorida do Fundamental, todos pensavam que formariam um casal em breve, mas não aconteceu. Ambos conheceram outras pessoas e se afastaram, a ponto de quase não se reconhecerem mais. Ficaram sem graça com o reencontro, quase nada foi mencionado sobre o tempo em que eram tão íntimos. As compras foram embaladas e os dois se despediram.
De pantufas e com um pó de café duvidoso dentro da sacola, assim voltou Carlos para casa, pensando no que escreveria no esboço agora que tinha adquirido a matéria prima de suas criações. Subiu o prédio e encontrou Susana na cozinha, tomando café.

Onde você foi? – perguntou ela.

Fazer compras, não tinha café e eu fui comprar. Só comprei o café e a pasta de dentes. Onde você deixou a lista de compras?

Eu joguei no lixo, comprei tudo ontem, não viu as sacolas na lavanderia?

Publicado originalmente em 14 de Novembro de 2023.


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