Os passarinhos estão em festa nesta trégua de chuva, cantam alegres, enquanto não sei se a chuva é para eles uma boa notícia. Se conseguem arrancar mais fácil da terra úmida o seu alimento, ou se por consequência este lhes é escasso. Só sei que cantam, trovam e declamam, estão felizes por algum motivo, ou apenas escondendo sua dor. O gato dorme tranquilo no armário, atrás do meu vaso de folhagens, ao lado dos discos de vinil e abaixo da prateleira com meus livros. Com queixo repousado na tábua branca, a respiração calma, mas com suas orelhas atentas aos barulhos de máquinas da oficina. Do lado de fora do janelão à minha frente, sobre uma mesa de madeira está um vidro de conserva com algumas mudas de folhagens, irmãs das que estão mergulhadas no vaso ao lado do gato. Vejo o velho bambuzal ao lado do rio, além das plantações, e adiante da mata ciliar, uma floresta de eucaliptos. Abaixo deles vivem cavalos, que ficam soltos para pastar a vegetação e deixar o terreno dos vizinhos limpo. Por vezes até esqueço que lá atrás dos eucaliptos, em uma área plana em cima de uma encosta, há uma casa pequena, branca com molduras vermelhas, e um quintal cercado com plantas de variados tipos. Adiante está uma floresta, algumas plantações e pastagens e novamente, uma grande floresta que cobre a encosta do morro. Lá roncavam os bugios, embrenhados na mata em seus bandos. Roncavam, um grito de guerra como despertador, alertando que o dia começou e estava na hora de ficarem espertos, comer, se reproduzir e repelir eventuais ameaças. Repelir ameaças humanas e de outros predadores com classe. Me pergunto se a estratégia dos bugios de ameaçar os inimigos jogando cocô já foi usada por algum exército na história humana. Em algumas manhãs, quando eu era criança e adolescente, minha família falava que o barulho grave na serra eram os bugios roncando, não estavam dormindo, é claro, mas algo havia chamado a atenção do grupo. O tempo passou e hoje lembrei desse fato. Os bugios sumiram. Não lembro qual foi a última vez que ouvi seu ronco. Acredito que foi quando estava perto de uma outra floresta colhendo feijão. Isso foi a uns seis anos atrás, o que me leva a crer que os bugios do morro aqui perto foram exterminados. Talvez por comerem espigas de milho das plantações, roubado telhas de algum paiol ou simplesmente foram dizimados por pura diversão. Esses bugios vão desaparecendo, enquanto resta seu nome nas composições gaúchas, nas músicas alegres de acordeon, um ronco artificial que, talvez por alguma esperança, faz uma homenagem ao animal. Mas nada substitui ouvir o ronco legítimo dos bugios em uma manhã de geada, quando o sol aparece e dão exemplo de gratidão por um novo dia com seu ronco grave.
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Publicado originalmente em 5 de Dezembro de 2023.