Volta ao Mundo, como Phileas Fogg, ou Dom Quixote

Juliana entrou em casa, foi até a cozinha beber água e depois até a sala descansar um pouco. Esperava encontrar o pai sentado no sofá e compenetrado lendo o livro “Volta ao mundo em 80 dias”, empolgando-se com as aventuras do emblemático Phileas Fogg. O idoso ganhou o livro da neta a poucos dias, e o colocava de lado apenas para almoçar com a família e quando ia dormir.

– Deve ter ido ao banheiro, ou foi dormir um pouco – pensou Juliana ao ver que o pai não estava na sala.

Logo ouviu alguns barulhos no quarto e foi ver o que estava acontecendo. Imagine seu espanto ao ver João de pé em cima de uma poltrona tirando uma mala de viagem de cima do guarda roupa.

– Pra quê isso? Vai se machucar assim! – disse em voz alta, quase gritando. João não deu ouvidos, jogou a mala em cima da cama e desceu da poltrona antes que Juliana pudesse interferir.

– Eu quero, eu pego. Eu posso.

– Pra quê isso? Pra onde você pensa que vai?

– Dar a volta ao mundo em 80 dias, igual o Phileas.

– O senhor está maluco. Você já não tem idade pra ficar viajando assim, e se não me engano Phileas Fogg deu a volta ao mundo com o Criado, como é o nome mesmo… Pas… Pass…

– Passepartout.

– Que seja, mas esse é só um dos problemas, não posso deixar o senhor fazer essa loucura.

– Já está me ofendendo – falou enquanto dobrava algumas roupas e as colocava na mala – não preciso dar a volta ao mundo em 80 dias, não apostei com ninguém e ninguém me desafiou.

– Então fique em casa. João riu.

– E se alguém vir te roubar? – Juliana continuou.

– Eu ó, ó – falou tirando uma faca de cozinha de cima da cama e espetando o ar algumas vezes.

– Mas e se a polícia te revistar e encontrar isso?

– Eu falo a verdade, que viajei com pressa e não tive tempo de comprar um revólver.

Indignada, Juliana ficou sem reação, não queria contrariar o pai, mas não podia o deixar viajar. João parou um pouco e olhou para a mala por alguns segundos, tentando lembrar o que faltava.

– Ah, os documentos!

Foi buscá-los na mesa de cabeceira. A filha saiu do quarto e se perguntou se era uma fantasia passageira e logo João estaria quieto no sofá lendo, ou se realmente o ímpeto era verdadeiro e duradouro, e portanto, um risco para si mesmo. Trancou as portas e ficou mais tranquila, pensando em avisar os irmãos, que agora a casa era um presídio e deveriam deixar as portas trancadas ao visitá-lo, até que esse sonho louco passasse. Porém, esqueceu de fechar as janelas, e ao ir procurá-lo, não o achou mais. Ligou para os irmãos relatando o ocorrido, e logo todos eles estavam percorrendo a cidade à sua procura. Não adiantou, não compreendiam como João havia desaparecido tão facilmente. Não faziam ideia de para onde ele teria ido. Falaram com amigos e familiares, e não tiveram acesso a nenhuma informação relevante. Entraram em contato com a polícia e tiveram acesso às imagens das câmeras de segurança do terminal rodoviário, sem êxito. O alerta de pessoa desaparecida foi instaurado e as buscas persistiam. Surgiram algumas pistas, João havia pego carona até outra cidade, mas as pessoas que o encontraram não imaginaram que sua família estava desconsolada e a cidade inteira à sua procura. Passadas algumas semanas, as buscas foram arquivadas e todos voltaram para suas atividades normais, Juliana, a mais triste e mais empenhada nas buscas já arrumara um novo emprego, pois perdera o outro pela sua impaciência em procurar o pai. Certo dia uma das sobrinhas mandou o link de um vídeo no grupo da família.

– “Olhem no minuto 14, acho que é o vovô!”Era uma reportagem sobre uma cidade turística, famosa por suas águas termais. Lá estava João, para o alívio da família, dando uma breve entrevista, com sua opinião sobre os encantos da cidade. Não mudou muito, estava com o cabelo curto e barbeado, porém, abraçado a uma mulher aparentemente mais nova, de cabelo dread e um olhar sonolento.

– Encontrou seu Passepartout! – pensaram. Porém, a partir desse momento acreditavam que João estaria mais seguro viajando sozinho. Dias depois entrou em contato, seu novo amor encontrou o perfil da neta em uma rede social, e logo estava conversando com Juliana. Passou a ligar com frequência, falando dos lugares que visitavam. A família ficou mais tranquila, apesar das saudades. Depois de uns meses o namoro foi desfeito, e o Phileas Fogg da família estava viajando sem seu Passepartout, porém João conseguiu um celular e estava novamente mantendo a família informada. Algumas vezes isso lhes deixou mais preocupados, como quando passou a mandar fotos com uma gangue de motoqueiros, em bares e fazendo quedas de braço, também quando passou a noite na cadeia e teve que pedir uma ajuda da família para pagar a fiança, pois sua aposentadoria não deu conta.

Era um Dom Quixote, suas lutas com os moinhos de vento iam aparecendo, suas motivações eram nobres para quem o encontrava no caminho, menos para os filhos que de longe acompanhavam e temiam suas aventuras. Com o passar do tempo perceberam que ele nunca daria a volta ao mundo, já haviam se passado meses e João nem havia saído do país, estava viajando em círculos. Era um viajante destemido e louco, ora Phileas Fogg, ora Dom Quixote.

Publicado originalmente em 24 de Fevereiro de 2024.

Deixe um comentário