O vizinho resolveu fazer a festa. Literalmente. Foi uns dias após o início da quarentena. Como eu sei? É uma boa pergunta, já que esse vizinho mora a mais ou menos meio quilômetro da minha casa. Bem, eu ouvi. Ouvi o baru… ou melhor, a melodia. Pelo que eu lembro, eram melodias que representavam bem o cenário moral do País, que levavam os ouvintes a pensar coisas puras, imaculáveis. Acho que eram de Bach ou Salieri, música de ninar mesmo, até altas horas da noite. O som tava normal, nada demais.
Eles tinham uma voz magnífica, entoavam números — Seis! — Cantava um. — Doze! — Respondia o outro com uma serenidade incalculável. Deviam estar discutindo algumas equações matemáticas, com certeza não era truco. Os anfitriões e os convidados provavelmente são da nobreza, só a nata, da mais alta estirpe. Não é qualquer um que pode desrespeitar a lei do governador. Eles com certeza tinham carta branca. E vírus nenhum se atreveria a promover a desgraça nessa família.
Os convidados certamente eram ilustres, os homens honrados em seus trajes militares, sapatos engraxados e quepe. Falando sobre corridas de cavalo e seus atos heróicos. Os mais velhos jogando xadrez. As damas na cozinha cozinhando e ensinando bons modos ás moças mais novas. Essas últimas, com seus vestidos compridos, puras, ainda coravam quando percebiam a atenção especial de um rapaz.
Depois desse dia, as festas acabaram. O que é estranho pra pessoas que tem a liberdade de fazer festa quando quiser, principalmente agora, que não se fala mais em quarentena. Agora está mais fácil fazer uma festa, mas pra eles, seria chato, devem estar esperando outra crise. Devem ter lido Maquiavel, mas eu ainda não cheguei na parte: “Para demonstrar sua soberania, faça um banquete em meio a uma pandemia, todos saberão que você é superior.”
Se eu estou com inveja? É claro. Quem não estaria? Os vizinhos deles são privilegiados, mais perto, a melodia deve ser ainda melhor. Aquelas vozes de coral cantando números no se ouvido deve amenizar qualquer depressão ou tristeza. Quem não quer fazer uma festa assim agora, e chamar toda família. Em um lugar bem apertado, tipo carnaval, nada de máscaras, álcool só naquele copo de caipirinha compartilhado. Nada de lavar as mãos. Uma festa assim resolveria muitos conflitos familiares. Mas ninguém iria. Estão todos com medo desse “víruzinho.”
Estou esperando a próxima festa do vizinho. Provavelmente, quando houver outra pandemia.
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Publicado originalmente em 23 de Junho de 2020.